As “novas patologias” e seus interrogantes na clínica

12 julho, 2024



Para dar partida a essa breve pontuação, gostaria de ler, como epígrafe, a letra da canção de Chico Buarque chamada “A Rita”, na qual ele diz assim:

 

A Rita levou meu sorriso

No sorriso dela

Meu assunto

Levou junto com ela

O que me é de direito

E arrancou-me do peito

E tem mais

Levou seu retrato, seu trapo, seu prato

Que papel!

Uma imagem de são Francisco

E um bom disco de Noel

A Rita matou nosso amor

De vingança

Nem herança deixou

Não levou um tostão

Porque não tinha não

Mas causou perdas e danos

Levou os meus planos

Meus pobres enganos

Os meus vinte anos

O meu coração

E além de tudo

Me deixou mudo

Um violão

Por hora, fiquemos com a música ressoando como pano de fundo e trilha sonora para essa leitura.

Vivemos, hoje, tempos nebulosos no que diz respeito ao sujeito e seus sintomas diante do advento das “novas patologias”. Estão na ordem do dia, ultrapassando o meio psi, correndo, também, à boca pequena, no círculo “leigo” (e leigo, aqui, entre aspas visto que Freud nos alerta quanto a esse significante), questões quanto à elaboração da quinta edição do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais).

É diante do que encontramos como demanda na clínica, na fala do sujeito quando bate à nossa porta, que somos convocados a também nos interrogar e a fazer uma intervenção ética nesse discurso contemporâneo que solapa a singularidade.  As novas patologias, ou, como preferem outros autores, as novas modalidades de subjetivação (que nada têm de novas e nos são velhas conhecidas), fazem um par perfeito com o discurso contemporâneo. Porém, como não há casamento sem desencontro e embaraços, assim como não há sujeito sem divisão, somos exigidos a sustentar uma posição ética e a manter uma crítica assídua no que se refere não só à clínica e à escuta do sujeito na sua singularidade, mas também a esse mal-estar na civilização.

Mal-estar que já podia ser ouvido em 1929, quando assim escreve Freud no primeiro parágrafo de seu texto “O mal-estar na civilização”:

 

É impossível fugir à impressão de que as pessoas comumente empregam falsos padrões de avaliação – isto é, de que buscam poder, sucesso e riqueza para elas mesmas e os admiram nos outros, subestimando tudo aquilo que verdadeiramente tem valor na vida. (FREUD, 1929, p. 73)

Hoje, vemos o discurso médico-científico ganhar força e se disseminar como palavra de ordem na cultura. Ele vem de mãos dadas com o discurso do capitalismo, atrelado às exigências do mercado, se instalando como o “novo” discurso contemporâneo. Tal discurso sustenta uma verdade absoluta quanto ao sujeito e afirma, com veemência, os transtornos, desordens ou distúrbios que o acometem, assim como oferece a melhor, mais eficaz e moderna forma de tratá-los ou eliminá-los. A ideia de extirpação e higienização retorna como método para solucionar os problemas sociais e humanos. Assim, como nos ensina Foucault, passamos de uma sociedade da lei para uma sociedade da norma, onde o que nos rege é a distinção permanente entre o normal e patológico.

O imperativo categórico que se instala na contemporaneidade é o seja feliz, máxima que determina o lugar do sujeito no mundo dos “normais”. Embora a busca da felicidade não seja nova, e sim diga de um ponto de estrutura do sujeito, nos tempos regidos pela avaliação, pelo sucesso e pelo apagamento completo da diferença, ou seja, pelo discurso médico-científico legislado pelo DSM, ser feliz é ordem, e é preciso que seja plenamente. Porém, como nos alerta Freud (1929, p. 84), “[...] o que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica”. Embora a felicidade seja, por estrutura, o propósito e a intenção da vida do homem, ela se mostra instantânea, fugaz, fugidia, episódica, como nos aponta Freud.

Diante dessa classificação categórica, subdividida e baseada num conjunto de critérios, como se apresenta o DSM, instaurou-se como desnecessária a escuta do sujeito e da sua história, bastando enquadrar suas “manifestações sintomáticas” nesse conjunto de critérios e, prontamente, definir um diagnóstico claro e objetivo e um medicamento eficaz para enquadrá-lo de novo no rol da normalidade. Nunca foi tão fácil diagnosticar as angústias, preocupações e tristezas inerentes à vida como “síndromes” e “transtornos”, assim como nunca foi tão farta e desnecessária a prescrição medicamentosa. Lançar mão, a priori, de um diagnóstico que traz como brinde uma caixinha surpresa, envolta por uma tarja preta, onde se encontra uma “balinha milagrosa” que deixa o sujeito “feliz” e elimina qualquer possibilidade de subjetivação, é calar o sujeito e fazer seu grito afônico, inaudível e, ao mesmo tempo, ensurdecedor. A “febre classificatória”, ou a banalização diagnóstica, se apresenta paradoxal, grave e nos coloca num impasse ético diante da proliferação medicamentosa e dos interesses do mercado a que ela serve. Como nos aponta Erik Porge, “[...] ela serve, antes de tudo, aos interesses de seu corporativismo, dos laboratórios farmacêuticos e das políticas de saúde”.

E o assunto torna-se mais severo quando se trata da banalização dos diagnósticos infantis e da medicalização da infância, cada vez mais precoce. A infância passou a ser uma doença. Ao menor sinal de “inadequação”, de um comportamento não esperado ou que não esteja dentro dos padrões do que se considera satisfatório, seja em casa ou na escola, a criança é levada, numa viagem ininterrupta, a consultórios dos mais diversos especialistas, que têm como função nomear o mal-estar que ela denuncia. Precocemente, as crianças vão sendo diagnosticadas, rotuladas, nomeadas e apaziguadas da sua constituição subjetiva. E, nessa busca por respostas, soluções, por um ajustamento daquilo que foge ao padrão, por uma adequação à normalidade, busca que tem aparência de cuidado e proteção, de tratamento, pais e professores compactuam com esse saber médico-científico, classificatório, que tem como efeito uma lesão desastrosa na subjetivação da criança enquanto sujeito desejante. Como aponta Ângela Vorcaro, um transtorno atribuído a uma criança produz um dano imaginário no laço social. Ou seja, para além do diagnóstico, do transtorno, da inadequação, está a doença da infância, a constituição psíquica, os sintomas que são próprios do infantil, sendo esse infantil a estrutura, aquilo que constitui o sujeito, aquilo que constitui sua neurose, como bem nos lembra Freud ao dizer que “a neurose é infantil”. Assim, medicalizando o infantil, o sujeito na sua constituição psíquica, estaríamos impedindo que esse sujeito se constitua como tal, como sujeito desejante? Nas palavras de Vorcaro (2011):

 

A nomeação diagnóstica pode adquirir tamanha valência que destitui o nome-próprio da criança, substituído pela identidade social conferida pelo nome da síndrome em que a medicina localiza, define e torna transparente a estranheza causada por ela. Estabelece-se, assim, sua nova filiação, já que a paternidade, sobre-o-nome, é dada pelo nome-da-síndrome (Santana, 1998, inédito) que baliza, referencia e justifica os atos, falas e condutas da criança, deslocando-a da possibilidade de situar-se a partir de sua ordem própria de filiação. Inserir uma criança no laço social como “aquela Rett”, “ele é PC”, “meu filho é Asperger”, é reduzi-lo ao registro médico, é amputar sua singularidade subjetiva. (VORCARO, 2011, p. 228)

 

Assim, a clínica nos interroga, pois que a clínica, seja ela qual for, é discursiva e, sendo assim, comporta o sujeito ($) dividido, singular. A clínica não é o lugar do fenômeno, do transtorno, da síndrome, mas sim o lugar da problematização do que transtorna, daquilo que desaloja e embaraça o sujeito, daquilo que o constituiu como tal, como desejante e inscrito no desejo do Outro. É exigência ética que nós não compactuemos com esse “saber anônimo da verdade da ciência” e possamos sustentar uma pergunta diante dos pequenos sujeitos que já nos chegam diagnosticados, muitas vezes, medicados, robotizados, com a demanda simples de uma confirmação diagnóstica.

Essa exigência ética é de que possamos, na direção de cura, dar voz ao grito de angústia do sujeito, escutá-lo na sua singularidade, permitir-lhe a dor, suportar o mal-estar e trazer de volta aquilo que o torna humano, ou seja, seus afetos mais corriqueiros. E que “[...] ópios, édens, analgésicos não toquem nessa dor, pois ela é tudo o que sobra ao homem”.

Quanto à criança, seus pais, professores, a escola e seu grande embaraço com o infantil, que uma pergunta também se faça: para que ou para quem serve esse diagnóstico tão buscado? Não seria para escamotear o saber que, de fato, importa no ato e na função de educar? Que eles – pais e professores – possam se apropriar do seu saber “leigo” e sustentar de fato seu lugar como educadores, sem a chancela do saber médico. Que possam eles se reconciliar com sua infância, ser surpreendidos e permitir a surpresa, o inesperado e a construção de um saber. E que o manual a ser seguido, principalmente na escola, não seja classificatório, esquemático e banal, mas sim que seja literal, literário, que comporte a letra, o a, o furo, o resto. E, recorrendo à nossa literatura infantil, tão rica de surpresas e significantes, assim como a própria infância, numa tentativa quase desesperada de fazer um corte nesse manual de instruções de fala plena de sentido, convoco “O menino maluquinho” a ser nosso “livro de cabeceira” nesses tempos tão pragmáticos. E que possamos aprender com esse menino que a infância cumpre seu tempo, deixa suas marcas e que o menino cresce, se torna adulto. Que esse crescimento não seja cheio de amarras que engessam e robotizam a vida. Que possamos descobrir, de fato, que esse adulto de amanhã, não foi ontem um menino maluquinho, mas sim um menino feliz. Feliz naquilo que a felicidade comporta de singular, de desejo, sem dormir no ponto um sono letárgico que não nos permite sonhar, pois a felicidade, como canta Tom Zé, “[...] é cheia de graça, é cheia de lata, é cheia de praça, é cheia de traça” e comporta sempre um ponto de falta.

E, para finalizar, retomo o meu ponto de partida, “A Rita”, cantada por Chico. Pois é a “Rita (Lina)” que vem levando o sorriso, o assunto, aquilo que é, de direito, infantil. Vem arrancando, do peito da criança, o afeto, a surpresa, a espontaneidade, aprisionando-a nessa identidade coletiva, matando o que há de próprio e singular, não permitindo se apropriar da herança que lhe foi legada, causando perdas e danos ao sujeito infantil. É essa “Rita (Lina)” que vai levando embora os planos, os sonhos, não permitindo os pobres enganos que fazem parte da experiência de cada sujeito. E, assim, faz calar, deixando mudo o violão.


Gláucia Pinheiro

Texto de 2012, mas completamente atual. 

 

Estreia

13 junho, 2024

Há alguns dias fui assistir à estreia da peça de uma amiga querida que estava completando 25 anos de carreira. Lá estava ela, única, intensa, naquele palco enfeitado pelos figurinos de suas várias primeiras vezes, sob a incandescência avermelhada do holofote que a iluminava. Emocionada, ainda nos primeiros minutos do espetáculo, pensei, “ela faz isso há 25 anos, está escolada”. De repente, sou surpreendida pela fala que ao escutar ali, seguiu comigo, ressoando por semanas. “Eu adoro estreias. Estrear uma peça nova, um texto novo, um livro, uma comida... uma pessoa. Adoro estrear pessoas novas...” Saí dali com a indagação do quanto há de arte na vida e de real na arte. Do quanto a vida, a real, cotidiana, crua e dura, mas sempre de uma boniteza singela, é feita de estreias.


Estreias sem palco ou holofotes com jatos de luz, mas banhadas por tímidos raios de sol ou enevoadas por grossas neblinas. Ou mesmo encharcadas pelo aguaceiro de uma tempestade cinza. A vida é feita de estreias e a cada dia, mesmo que ela pareça fazer tudo sempre igual, se prestarmos bem atenção, estamos sempre inaugurando uma primeira vez.

Me lembrei de um texto que escrevi para encerrar o primeiro semestre letivo da primeira turma para a qual fui professora na graduação de psicologia. Nele eu falava da estreia deles, os alunos, como a primeira turma de psicologia daquela faculdade que dali em breve iria se formar. Falava da minha estreia na primeira turma pra quem eu me apresentava como professora universitária. Eu estava ali estreando uma prática que era minha velha conhecida. Afinal, mãe, tia, tia-avó professoras, marcaram com exemplos as brincadeiras de escolinha desde que eu comecei a me entender por gente. Me formei em Magistério. Fui professora antes de ser psicóloga. Um paradoxo. Como estrear algo que há tanto faz parte da minha vida? Por que aquele frio na barriga, a inquietação e um leve medo de não ser capaz? Logo uma resposta rápida. Uma estreia é sempre impregnada de sonhos, expectativas, desejos, que aparecem mesclados com esse medo, com as incertezas e inseguranças. Muitas vezes não só nossos, mas também daqueles que compõem nossa rede de afetos.  Éramos ali, naquela estreia, protagonistas da história daquela faculdade, carregando o peso dos impasses, dos embaraços, dos tropeços que ser o primeiro impõe.


Desde pequeninos são inúmeras as primeiras vezes que nos deixam marcas e com as quais vamos construindo e contando a nossa história. O aparelho psíquico se funda com uma primeira experiência de satisfação, já dizia Freud. É a partir daí, das experiências que se seguem, que vamos nos constituindo. O primeiro desconforto, o primeiro sorriso, os primeiros passos, a primeira palavra... o primeiro dia na escola, o primeiro tombo de bicicleta, a primeira professora, o primeiro beijo... o primeiro amor, o primeiro dia na faculdade, o primeiro emprego... o primeiro filho... E todas essas primeiras vezes acolhem o prazer e a angústia, a euforia e a inquietude, a expectativa e a frustração... Há nas estreias o desejo da conquista e o medo de se lançar ao novo desconhecido, mesmo que já tenhamos notícias dele.
Quase que em associação livre, meus pensamentos e devaneios voaram do palco, da sala de aula, para minha prática clínica. Me dei conta que eu também, há quase 25 anos, escuto pacientes em análise. Um novo paradoxo. Tanto do lado do analista quanto dos pacientes, pois a cada novo paciente que chega e uma nova análise se inicia, é sempre surpreendente novo, único. É sempre uma estreia. Cada sessão é marcada por um ineditismo. Uma palavra, a tanto repetida, pode ali ganhar um outro sentido, um novo estatuto e aquele sujeito, deitado no divã, ser surpreendido em estado de primeira vez. Nesse trabalho, tanto analista quanto analisante “estreiam pessoas”. E apesar da aridez e das dores com as quais nos deparamos na travessia desse percurso, ele é surpreendentemente poético. É assim, nas estreias sem público, sem plateia, sem um palco iluminado, que a vida acontece, que vamos nos descobrindo e reinventando, enfrentando nossos dragões imaginários e nos encantando com a beleza e a surpresa de experimentar o mesmo pela primeira vez. 


 

Ou isto ou aquilo

21 novembro, 2023

Há perdas inevitáveis, que atravessam o nosso caminho inesperadamente e comportam uma radicalidade. Há outras que são marcadas por escolhas, mesmo que forçadas, e que nos abrem brechas para inventar novos percursos.

Perda, um substantivo amargo. Perder, um verbo difícil de conjugar. Desde que nascemos e expandimos os nossos pulmões com aquele chorinho estridente, desde que os olhinhos se abrem para desbravar o mundo aqui fora, começamos a perder. Daí em diante, nesse intervalo entre o nascer e o morrer, a vida acontece, tecida nos fios das perdas. O nascimento é o primeiro passo para a finitude e a perda é essa experiência humana radical que se apresenta como imperativo na vida.
A animação infantil DivertidaMente, de forma lúdica e colorida, nos mostra como a primeira experiência de satisfação é mítica e fugidia. Abrimos os olhos, aconchegados no quentinho do cuidado e num estalito, está lá a satisfação de uma primeira experiência alegre, instaurando nosso aparelho psíquico. No instante seguinte, quase que no mesmo estalo, o desconforto, a insatisfação, o desprazer da tristeza nos invade.

E assim a vida segue, nesse lá e cá, na busca insistente pelo prazer, pela constância da satisfação, por eliminar a dor, mesclando outras emoções, mas com a angústia, o afeto por excelência, ali, como um bichinho incômodo, que as vezes cresce, as vezes abranda sua mordida. E se viver é etcétera, como diz Guimarães Rosa, a vida se dá no gerúndio, digo eu. Vamos assim perdendo, ganhando, construindo, inventando, refazendo, (re) existindo... vivendo.
As perdas trazem junto consigo o luto, as frustrações, dores, fracassos e recomeços. E toda perda exige um tempo de elaboração daquilo que deixamos para trás para poder seguir em frente. Esse tempo, que só anda de ida, vai levando consigo o sofrimento e cicatrizando as feridas. Há perdas que são inevitáveis, que fazem parte da condição humana. São tempos de passagem que vão deixando marcas e mudanças. Os dentinhos de leite que caem dando lugar a dentões meio desproporcionais, a adolescência que vai nascendo nas transformações do corpo, as mechas grisalhas que se somam às rugas no espelho do banheiro. Há uma perda radical, que nos coloca diante da finitude do outro e de nós mesmos. A morte, essa perda avassaladora, nos arranca a presença, a voz, o cheiro, o tato. Deixa de resto só a lembrança. Há ainda outras perdas onde a vida não se estingue, mas que chegam de forma imprevisível. Atravessam o caminho como um caminhão desenfreado numa estrada sinuosa. Nos surpreendem, assuntam. Rompimentos que portam o imponderável, a violência, o incontrolável. Trazem a marca e a decisão do outro. 

Mudam o rumo, a rota, o sonho, o desejo. Nos quebram, nos viram do avesso. Aquela amiga que não mais responde as mensagens, a demissão de um trabalho desinteressante, mas que era base de sustento, o amor que decide ir embora no auge da sua paixão, o adoecimento que chega de mansinho e se instala, um filho que veste suas asas e voa para desbravar o mundo. E diante de todas essas perdas é preciso se refazer. Recalcular a rota, reposicionar o desejo, colar os caquinhos e fazer um caleidoscópio, vestir-se do avesso e, quem sabe, descobrir que esse avesso é o lado que te veste melhor.Outras tantas perdas que enfrentamos são respostas às nossas próprias escolhas. Diante dos impasses e encruzilhadas que a vida nos apresenta, decidimos, apostamos, escolhemos um caminho ou outro. Escolhas, às vezes, forçadas. É a bolsa ou a vida, como na metáfora trazida por Jacques Lacan. Só há uma escolha frente ao ladrão que nos exige que passemos a bolsa, com uma arma apontada para o nosso peito. Se escolhemos a bolsa, ficamos sem a vida. Ao escolhermos a vida, seguiremos em frente sem a bolsa, com essa parte que falta. Uma metáfora para nos dizer que a vida é sempre mordida pela falta. Em todas as escolhas, perdemos. Deixamos um tanto para trás. Em cada aposta, pagamos. Damos um passo sem garantias em direção aos nossos sonhos e desejos. Não há completude, não há tudo, não há todo. É sempre ou isto, ou aquilo como no poema que tanto recitamos na infância. Mas ao sustentarmos nossas escolhas, ganhamos.

É isso que nos ensina o trabalho de análise. Elaborar nossas perdas e escolher o que perdemos, sem nos perdermos de nós mesmos. Como ensina Freud, a análise nos ensina não somente o que podemos suportar, mas também o que devemos evitar. O trabalho de análise é um trabalho de perda. De perda de gozo. Um trabalho que nos permite abrir mão do gozo embutido no ganho secundário dos nossos sintomas, que nos possibilita desatar os nós que nos amarram a relações que nos aprisionam, que nos impede de ficar escravos dos narcisismos dos filhos, dos chefes, do capital. É nesse trabalho de perda que abrimos brechas para reinventar novos percursos, sustentar nossas escolhas e seguir na trilha do nosso desejo. É o que ganhamos quando perdemos.

Gláucia Pinheiro

 

O tempo da mudança

21 novembro, 2023

Faz algum tempo, precisei me mudar de casa. Quanto trabalho faz uma mudança. Remexer em tudo aquilo que já está organizado, acomodado nos armários que muitas vezes nunca mexemos. Aquelas louças que nunca usamos, as roupas que já não nos servem mais, gavetas com cheiro de mofo. Outras, as gavetas da bagunça, com tudo aquilo que vamos acumulando sem quê nem pra que. E os livros. Ah, os livros! Essa é pra mim a melhor e a pior parte. Os livros são minha paixão. Neles me perco. E me acho. Tenho para mim que eles são o maior bem que eu acumulo. Ao encaixotar minha modesta biblioteca revisitei lembranças. Fotos perdidas usadas como marcadores de páginas com trechos sublinhados. Passados. Memórias. Cartas, bilhetes, anotações, canções, amores. Histórias que ultrapassavam, e muito, as letras impressas e os enredos tecidos pelos autores. Nesse desengavetar passados para encaixotar futuros, mudar vai demarcando dois tempos. Das gavetas e estantes para as caixas. Das caixas para o novo que se anuncia. Mudar é abrir espaços, brechas para se surpreender com o novo.


Há mudanças que a vida nos impõe pelo simples fato de estarmos vivos. O tempo é implacável. Deixa suas marcas, suas fissuras. Altera a paisagem. A mudança e o tempo andam sempre de mãos dadas. Estamos ali, seguindo os dias, no marasmo das horas, no correr dos anos, na enganosa sensação de uma rotina inalterável, e de repente nos deparamos com o espelho. E lá estão as rugas do tempo. Olhamos para o lado e lá estão os bebês das fotos, crescidos, autônomos. Andamos pela cidade e não mais existe aquela padaria. A casa antiga de pé direito alto na esquina deu lugar a um prédio... Poetas e filósofos concordam que tudo muda o tempo todo no mundo. Tudo passa. Tudo sempre passará. O tempo passa e coloca a vida em movimento. Transforma, modifica e nós, mutantes, sem perceber, alteramos nossas cores como camaleões. Freud, como os poetas, num dos mais belos e inspiradores textos de sua obra, fala sobre a transitoriedade que é o destino de tudo e de todos, inclusive da vida. E é justamente essa tal efemeridade que torna a vida mais encantadora, surpreendente e valiosa. “Valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo.”
Mas há um outro tipo de mudança, que está para além de certas imposições da vida e do tempo. Uma mudança para além da estética ou do endereço. Uma mudança bem mais radical. Mudança de posição, de olhar, que altera as estruturas, abala os alicerces e abre novos horizontes. Aquela que nos exige romper com as armadilhas que nós mesmos construímos para nos aprisionar. Aquela que nos confronta com a dimensão mais profunda da nossa existência.
O belo dia em que se resolve mudar e fazer tudo o que se quer, como diz a canção da maravilhosa Rita Lee, não chega nesse de repente. Esse belo dia é marcado por uma decisão, por um corte, um rompimento com tudo aquilo que não nos cabe mais. Decisão gestada, maturada, que ficou de molho qual roupa quarando no sol pra tirar as manchas. Decisão que exige coragem para se revolucionar e se reinventar. É o tempo da mudança. Entre o instante de ver e o momento de decidir, um tempo para compreender, para preparar. Essa mudança é libertadora. E não há uma regra que seja válida para todos, cada um precisa encontrar a sua liberdade para ser quem se é, com suas falhas e tropeços, suas rugas e rachaduras.


O trabalho de análise nos ensina não apenas o que podemos suportar, mas também o que devemos evitar”, como diz Freud. A análise nos prepara para mudar, nos ensina a nos reinventar. Ela não vai nos curar dos nossos sintomas, mas vai nos permitir encará-los de frente, reconhecê-los, enxergá-los com outros olhos. A análise nos possibilita, principalmente saber/fazer com eles. E é aí, nesse saber/fazer com nossos sintomas, que nos tornamos mais livres.
A escritora Martha Medeiros vai dizer que a fonte da juventude se chama mudança. Eu diria que a mudança, subjetiva, é a chave para a liberdade. Se a mudança e o tempo andam de mãos dadas, é ela quem vai trazer as tintas de cores vivas para colorir sua passagem. É na mudança que o novo vem e que o tempo se desacelera na evolução, revolução, reinvenção...
Mudar é trocar a roupa da alma, mantendo a sua essência, é reacender o olhar sagaz e vivo, colocando brilho na opacidade da vida. Toda mudança tem um preço emocional. Exige trabalho não só para enfrentar, mas para sustentar o novo. Exige coragem para mudar o rumo, a rota, para abrir mão das ilusórias garantias da estabilidade. Paga-se um preço muito mais alto por se manter inalterável, inflexível, estagnado nos simples hábitos.
Então, se pergunte, se interrogue, sobre o que te inquieta, te chacoalha, te faz desejar enxergar além dos muros que te aprisionam e ir além desses simples hábitos. Se liberte. Mude. Dance.
MU-DANÇA!


 

Depois do fim

19 setembro, 2023

“Vamos começar colocando um ponto final”. Assim se inicia a canção tema do documentário “Fênix: o voo de Davi”. Na noite do domingo 2 de setembro, em 2018, parte da nossa história ardeu nas chamas que consumiram o Museu Nacional. Um clarão se fez no coração do Rio de Janeiro incendiando nosso passado. Vimos queimar nossa memória e choramos, na ilusão de que nossas lágrimas pudessem apagar o fogo que desde tanto tempo faz virar cinzas as marcas que nos constituem como um povo. Ao sabor das versões vai sendo apagada a história que a história não conta, produzindo uma memória do esquecimento. 80% do acervo do Museu Nacional foi destruído pelo descaso, pela falta de investimento, pela miséria política que percorre nossa história. Restou de pé somente sua estrutura. Perda irreparável. Ponto final. “Um sinal de que tudo na vida tem fim”.
Mas é aí, depois do fim, que uma nova história começa. É da perda que se ergue o trabalho de luto. As chamas criminosas não mataram o desejo. Nem o sonho.Davi, bombeiro por profissão e luthier por artesania, estava lá naquela noite, ajudando a conter as chamas também com lágrimas. Um dia ele foi um menino, que ao subir as escadarias daquela casa grande que outrora serviu à família real portuguesa, viu sua história pessoal se misturar à história desse país. Somos constituídos das histórias que vivemos, que contamos e que nos contam. Construímos a nossa história pessoal mergulhados na herança daqueles que vieram antes de nós. E ao acordar, depois do fim, esse que um dia foi um menino que sonhou ser historiador (historia-dor), viu “um sol diferente no céu gritando que nada é tão triste assim”.
A partir das madeiras que restam como rescaldo dos incêndios que atravessam o seu ofício Davi constrói sua arte. A artesania do luthier é transformar madeiras em instrumentos musicais. Foi das madeiras centenárias que um dia foram árvores frondosas e se tornaram vigas sólidas na estrutura histórica de um patrimônio nacional, depois de arderem e queimarem, que Davi fez renascer a vida em forma de música. Como no mito da Fênix, ave de canto doce, essa metáfora que é o Davi, faz renascer das cinzas a vida que pulsa depois do fim. Reconstrói, a partir dos restos, um novo capítulo do enredo de nossa história. A madeira, como a Fênix, quando morre, canta. E quando renasce também, trazendo depois da dor, o esplendor do som do tempo.
O trabalho de análise é um trabalho de construção, ou de reconstrução, que se assemelha ao do arqueólogo, como nos ensina Freud. Reconstruímos, no divã, o que foi esquecido, a partir dos restos, dos vestígios deixados à luz. Preenchemos as lacunas da memória, num trabalho de lembrar para não mais esquecer. É nesse reconstruir que cada sujeito pode reinventar uma nova maneira de ser. No campo das artes, Freud compara o trabalho de análise à escultura. Nesse trabalho, analista e paciente, tal qual o escultor, per via dilevare, retiram da pedra bruta “tudo que cobre a superfície da estátua nela contida”. Assim como o trabalho de análise, do arqueólogo, do escultor, essa é a metáfora que o voo de Davi nos traz. É dos destroços que emergem os fragmentos para a reconstrução. Davi faz brotar dos restos incinerados da nossa história, instrumentos que nos permitem inventar uma nova canção, construindo, reconstruindo uma nova versão.
Estamos a pouco mais de 40 dias de colocar um ponto final no ano de 2022. Esse ano encerra um ciclo que se abriu lá em 2018 (ou um tantinho antes) e que teve como marco metafórico a dor da perda e da desesperança desse incêndio devastador. Nesse período de retrocessos e destruição ainda atravessamos um deserto pandêmico que deixou mais de 600 mil mortos. Mas não é sem razão que Caetano canta que o tempo, esse compositor de destinos, tambor de todos os ritmos, é um dos deuses mais lindos. O tempo, não sem trabalho, nos permite atravessar o luto e, depois da dor, encontrar o esplendor da coragem. Podemos transformar o trágico em poesia e depois do ressentimento fazer brotar o amor. A vida se reconstrói o tempo todo. No divã relemos e reescrevemos nossa história ressignificando nossos traumas e sintomas. No coletivo estamos tendo a chance de colocar um ponto final em 2022 e reconstruir o passado a partir dos escombros deixados, fazendo uma reparação histórica, apostando em tudo novo de novo. O amor, a arte e a poesia de mãos dadas para fazer a revolução. Pois, é somente depois do fim que escrevivemos novos começos.

Gláucia Pinheiro

Coluna No Divã - Revista DiverCidades 

17/11/2022

 

Precisamos falar sobre o suicídio

11 setembro, 2023



O sofrimento é uma condição humana. Desde que nascemos e mergulhamos no caldo cultural da linguagem, nos debatemos com os mistérios e enigmas em torno da morte e do morrer. É nesse intervalo, entre o nascimento e a morte, que a vida acontece, num rasgar-se e remendar-se, como poetisa Guimarães Rosa. Na busca constante de eliminar o desprazer do sofrer e encontrar a tão almejada satisfação, o homem vai experimentando as dores e delícias de sua condição. É bem menos difícil experimentar a infelicidade, como nos ensina Freud ao falar do mal-estar que permeia a cultura. Esta só se apresenta como um fenômeno episódico. Embora pareça existir uma regra de ouro para encontrar a felicidade, ela é inteiramente subjetiva e cada um precisa buscar a sua maneira de ser feliz.
Não é sem razão que Liev Tolstói diz que “todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Assim como a felicidade, o sofrer é subjetivo e imensurável. Não há uma régua capaz de medir, quantificar e qualificar a dor. Quando ela beira o insuportável, esbarra na desesperança, encontra o desamparo e fica de cara com o desespero, sair de cena se apresenta como solução, como forma de eliminá-la. O suicídio entra aí, como esse ato de matar a si mesmo, como forma de acabar com essa dor tão doída de existir.
Por que temos tanta dificuldade de falar e abordar o tema do suicídio de forma clara e sem preconceitos? Porque esse ato está envolto pelo tabu da morte. A relação do homem com a morte foi se desdobrando ao longo do tempo e dos avanços culturais. Mas ela segue sendo um enigma. Não há um saber concreto que a explique. Para a psicanálise, não há uma representação da morte no inconsciente. É a religião que vai se apropriar desse mistério, buscando decifrar os enigmas do pós-morte e estabelecendo o mandamento ético/cristão “não matarás”, nem a si mesmo. O suicídio, que sempre existiu na humanidade, ganha essa roupagem pecaminosa e moralizante, preconceituosa e estigmatizada, a partir do pensamento ocidental cristão.
E por que precisamos falar sobre o suicido sem as amarras dos estigmas e preconceitos? Porque o suicídio hoje, em nossa cultura, é uma questão de saúde pública. Na contramão do que acontece no resto do mundo, no Brasil e na América Latina, vemos o número de casos de suicídio aumentar. É a segunda principal causa de morte entre os jovens de 15 a 29 anos. O caminho para prevenir é não silenciar. É falando, discutindo, informando que podemos tirar do tema do suicídio o véu do silêncio, do estigma e da descriminação. É falando que o sujeito pode elaborar sua dor, encontrar caminhos para enfrentar o sofrimento existencial que o habita, buscar acolhida para seu desamparo. E é na escuta, sem julgamentos e preconceitos, que se pode acolher o outro com sua dor de existir. Falar é prevenir. Não silenciar é cuidar.
Com o objetivo de quebrar os tabus e estigmas do suicídio, o Setembro Amarelo se transformou numa das maiores campanhas de prevenção do mundo. No Brasil, desde 2015, acolher e escutar passaram a ser palavra de ordem no enlace entre educação e saúde preventiva. Promover a saúde mental é conscientizar e dar voz ao sofrer. O caminho para fazer da vida a melhor escolha é a acolhida, o cuidado, o afeto, sem moralizar ou menosprezar a dor do outro. É esparramar o setembro pelo ano todo, todos os dias.  É seguir à risca o conselho de Clarice (Lispector), esse sim, válido para todos: quando um amigo lhe chamar para ajudar a cuidar da dor dele, coloque a sua no bolso e vá. De ouvidos, braços e peito abertos!

Gláucia Pinheiro

Coluna No Divã - Revista DiverCidades 

29/09/2022

 

Sem cultura, a violência vira espetáculo

21 agosto, 2023



Certa vez li numa pichação em um muro, com letras garrafais, “EM UM LUGAR ONDE NÃO HÁ ATIVIDADES CULTURAIS A VIOLÊNCIA VIRA ESPETÁCULO”. No mínimo é uma frase intrigante, que nos coloca a refletir sobre o horror e a violência que marcam nossa história social e política. Na construção de nossa identidade enquanto povo e sociedade escrevemos uma história onde a violência sempre ganhou destaque promovendo inclusive a tentativa de um apagamento da cultura. Na narrativa história colocamos a violência para debaixo do tapete. A escondemos, silenciamos. Ela é pouco mencionada nas aulas e nos livros didáticos de história. A ignoramos, esquecemos ou recalcamos. Essa violência histórica, silenciada na nossa constituição enquanto sociedade, retorna, é repetida, com força, como sintoma social. Num paralelo com o que se passa na constituição subjetiva, éassim que se dá, o que recalcamos no nosso processo psíquico constitucional, retorna como sintoma.O sintoma é o retorno do que foi recalcado. No sujeito, o desejo resiste, na luta contra o sintoma. Na sociedade, contra a violência, a cultura resiste. Sempre! Como desejo!

Na direção de cura de um trabalho de análise o primeiro imperativo a convocar o sujeito é: fale sobre isso. É endereçando ao analista suas questões mais íntimas e traumáticas, falando, tornando-as públicas para si e para esse outro desconhecido no setting analítico, que o sujeito pode sair do silêncio do esquecimento, recordar, repetir (na transferência) e elaborar seus sintomas e traumas. É assim que ele pode sair das teias traumáticas, da sua violência particular, para se apropriar e tomar as rédeas do seu desejo. É o desejo que resiste, promovendo e sustentando o trabalho de análise. Este é um caminho árduo, que exige esforço, investimento, coragem para encarar sua própria história e abrir mão dos sintomas que lhes são tão caros.

Nesse paralelo entre o sujeito e a sociedade este também é o imperativo: colocar os sintomas sociais no divã, falar sobre eles. Enquanto sociedade estamos doentes. Muito doentes. Está a mostra toda nossa fragilidade sintomática. A espetacularização da violência em todas as suas facetas. Vemos o futuro repetir o passado. E mais uma vez somos silenciados e vemos o sintoma ganhar força. Diante de um pacto civilizatório esgarçado e ignorado, a morte é banalizada, o direito das crianças, dos idosos, das mulheres é usurpado, a pele preta é alvo, a sexualidade é castigo e, cada vez mais, a violência é institucionalizada, autorizada.

A civilização se funda no pacto estabelecido no laço social. É a lei simbólica que institui esse pacto. Ela vale para todos e para cada um. Nessa regra não há exceções. Para que haja civilização é preciso uma renúncia pulsional. Renuncia que também é de todos e de cada um. Para que os homens possam viver em sociedade é preciso renunciar à barbárie. Freud nos ensina que a pulsão sempre tende a atingir sua meta, sua satisfação. Quando não é possível ela se desvia. Precisa encontrar outro destino. Um desses caminhos, para dar vazão a isso que insiste e que o pacto civilizatório nos barra, é a sublimação. Sublimamos, produzimos, trabalhamos, criamos. Amamos! Buscamos a arte, a cultura. A gente não quer só comida, é preciso também diversão e arte. Não basta somente comer, é preciso também prazer pra aliviar a dor. Estamos marcados para além do campo da necessidade. É o desejo que nos move.

A cultura, a arte, é o remédio, o tratamento para essa sociedade doente. Há aqueles, que diante das suas angústias e sofrimentos, fazem da sua dor, do seu sintoma, arte. Escrevem, compõem, fotografam, pintam e bordam. Talvez esse seja um bom sintoma. Há outros que encontram a arte como refúgio, fazem dela remédio para aliviar a dor. Com olhar sensível e ouvidos atentos, contemplam e são afetados pela arte. E contra fel, moléstia, crime, usam Dorival Caymmi, bebem Chico Buarque, comem Guimarães Rosa. Para aqueles que se deixam afetar, a poesia salva, a literatura acende clarões no cérebro, a música transcende. A fotografia, a dança, o cinema, o teatro, a pintura nos permitem encontrar neles pedacinhos de nós. A arte transforma.

O caminho do trabalho analítico é possibilitar que o sujeito possa produzir a partir do seu sintoma. Fazer do sintoma, trabalho. Essa é a sua arte. O sintoma está ali, é estrutural, não será eliminado por completo. Porém, pode ser lido de outra forma, pode ser elaborado, redesenhado. Não é diferente com o sintoma social. É preciso trazer a cultura para a cena diária. Ela é resistência. É ela que nos permite elaborar, lembrar para não esquecer e repetir até se tornar diferente e não permitir mais a violência como espetáculo. Precisamos, de fato, de mais livros que armas!

Gláucia Pinheiro

Coluna No Divã 

Revista DiverCidades 

20/01/2022

 

Por que a psicanálise?

7 agosto, 2023


Inicio este texto que marca meu retorno à coluna “No Divã”, com a pergunta colhida do livro que leva este título, da psicanalista e historiadora francesa, Elisabeth Roudinesco. Esta interrogação será nosso ponto de partida para pensarmos sobre o que leva alguém a buscar um tratamento psíquico. Frente ao mal-estar que tanto nos ronda nos dias de hoje e diante de tantas ofertas de soluções rápidas e milagrosas para eliminá-lo, outra pergunta se faz presente. Que profissional devemos buscar quando precisamos cuidar da nossa saúde mental?

Outro motivo pelo qual lanço mão desta pergunta como ponto de partida, é o fato de ser a psicanálise a teoria, a prática clínica e o discurso que me atravessa. Dessa forma, aqui “No Divã”, no nosso divã, abordaremos os mais diversos temas e assuntos pelo viés da psicanálise.
Vivemos hoje tempos bastante nebulosos, de muitas incertezas e inseguranças. A pandemia do Covid-19 escancarou um grande buraco e abriu a caixa de Pandora, soltando nossos monstros, medos, abalando nossos afetos, acentuando nossas angústias e provocando um intenso sofrimento psíquico. Desde sempre os homens sofrem. Sofrem porque não é possível viver sob a égide da satisfação plena dos desejos. Desde que nascemos e mergulhamos no caldo cultural da linguagem, estamos fadados a uma quota de sofrimento. E é porque sofremos, porque somos afetados por nossas dores internas e pelas dores do mundo, que precisamos buscar ajuda e cuidar de nossa saúde mental.
Hoje, estamos diante de um sofrimento psíquico que atende pelo nome de depressão. Ela, a depressão, é a grande doença contemporânea, como já anunciava Jacques Lacan no final do século passado. Porém em nossos tempos, diante da busca desesperada de vencer o vazio do seu desejo - pois a depressão se apresenta nessa impossibilidade de desejar - vemos sujeitos pulando daqui para ali, numa via sacra em consultórios médicos e terapêuticos, na busca dessas tais respostas rápidas e milagrosas que lhe arranquem o sofrimento. E nessa busca, muitas vezes, não encontram tempo para refletirem sobre a origem do seu sofrimento.
O campo da saúde mental é bastante vasto. Ele nasce no seio da medicina e se estende para as ciências da alma. Durante a Idade Média, a loucura passeou pelo terreno da bruxaria, das coisas inexplicáveis e demoníacas. Com o passar dos tempos e com os avanços culturais, o doente mental, as histéricas e todos aqueles acometidos de qualquer sofrimento psíquico, puderam ser ouvidos e tratados a partir da sua singularidade, com dignidade.

A psiquiatria, a psicologia e a psicanálise são as três áreas do campo PSI que tratam do sofrimento psíquico na saúde mental dos sujeitos. Porém, embora façam parte de um mesmo campo de atuação, são disciplinas com abordagens teóricas e direções de tratamento bastante distintas, exigindo também uma formação diferenciada e específica, com atividades privativas próprias a cada prática clínica. Cada uma delas tem seus conceitos fundamentais e um escopo teórico no qual se edificam.
O prefixo PSI que se apresenta nas três disciplinas – psiquiatria, psicologia e psicanálise – deriva-se do grego psychê, que significa alma, espírito, mente. Este termo pode também ser traduzido como sopro e remete ao autoconhecimento.  A mitologia grega, tão cheia de ensinamentos, apresenta a divindade Psychê como a personificação da alma na busca pelo autoconhecimento. Desta forma, essas disciplinas PSIs, desde a suas origens, remontam ao logos, ao estudo e tratamento das doenças e sofrimentos da alma, da mente e do espírito.
Muitos sujeitos, quando acometidos e atormentados por suas angústias veem-se perdidos diante da oferta de especialidades, sem saber diferenciar essas práticas clínicas. Iniciam dessa forma uma busca pouco criteriosa e esclarecida, muitas vezes equivocada, por profissionais que possam acolhê-lo no seu sofrimento. Como então diferenciar essas três áreas que tratam do sofrimento psíquico? Que tipo de direção terapêutica buscar como tratamento?

A psiquiatria é uma especialidade médica. É preciso que se tenha formação médica para atuar como psiquiatra. É a mais antiga das ciências que estudam e tratam da arte de curar a alma. Ela surge na Idade Média juntamente com os primeiros asilos e hospitais destinados aos doentes mentais e ao confinamento da loucura.  A atuação da psiquiatria se baseia na identificação diagnóstica das doenças e sofrimentos mentais, na sua classificação e tratamento. Tem como prática privativa a prescrição das terapias medicamentosas e psicofarmacológicas.
Mas o tratamento psiquiátrico não só pode, como deve, ser conjunto com um acompanhamento psicoterápico ou psicanalítico. Para tratar as questões mais profundas e as dores mentais, não basta somente o uso de antedepressivos, ansiolíticos ou reguladores de humor. É preciso também a palavra. É por esse motivo que o psiquiatra, por ser habitualmente o primeiro profissional procurado diante do sofrimento psíquico avassalador, além de prescrever a terapia medicamentosa, orienta seus pacientes a buscarem uma psicoterapia ou análise.
A distinção entre a psicologia e a psicanálise é um pouco mais imprecisa. Desde o nascimento da psicologia como profissão no Brasil, há 58 anos, a psicanálise é uma disciplina que também faz parte do currículo de formação do psicólogo. Porém, psicologia e psicanálise, embora sejam contemporâneas em seus nascimentos como campos teóricos, no final do século XIX, florescem em terrenos distintos. A psicologia, filha de Wundt, tem seu berço em experimentos feitos em laboratório, de forma objetiva e com ênfase no comportamento. Ela nasce com base na fenomenologia. A psicanálise, filha de Freud, nasce da prática clínica, a partir da escuta da subjetividade e das experiências traumáticas vividas pelo indivíduo. A forma de se abordar o sintoma psíquico é a marca radical que diferencia essas duas práticas. A psicologia tratará o sintoma e a subjetividade pela via do comportamento, a psicanálise, inaugurando a terceira ferida narcísica da humanidade, forjando o conceito de inconsciente, tratará o sintoma e a subjetividade pela via do enigma a ser decifrado, do material recalcado.  Porém, tanto a psicologia quanto a psicanálise são práticas que têm a escuta como seu principal instrumento.
A psicologia engloba variadas abordagens teóricas e práticas psicoterápicas. É mais generalista e vai das terapias cognitivas e comportamentais às existências e humanistas. São diversos os teóricos e as práticas que fazem avançar a psicologia. Ela utiliza-se também de outros recursos, tais como testes psicométricos, avaliações psicodiagnósticas, escalas de aferição da linha do desenvolvimento. Já a psicanálise se sustenta como uma prática discursiva, um lugar de fala e da escuta de si. A experiência da análise leva o sujeito de encontro com o que há de mais radical no seu desejo. É o lugar privilegiado da palavra e tem como sua regra fundamental a associação livre. Não há em sua direção de tratamento objetiva, com protocolos a serem seguidos e a busca de uma adaptação ou eliminação dos sintomas. O divã é o lugar de se deitar e vivenciar na carne a radicalidade do inconsciente e da experiência analítica. Vários são os psicanalistas que fizeram avançar o campo aberto por Freud. O mais relevante deles é Jacques Lacan, que retoma os conceitos fundamentais da psicanálise e a radicalidade do inconsciente.
A formação do psicólogo se dá pela graduação na faculdade de Psicologia. Uma formação generalista, que perpassa diversas abordagens teóricas e campos de atuação. É uma formação por conhecimentos acumulados por diversas especializações. Já a psicanálise, não exige uma formação acadêmica específica. Há psiquiatras psicanalistas, psicólogos psicanalistas e outros profissionais que ao se endereçarem à experiência analítica e ao estudo permanente da psicanálise também podem tornar-se analistas e praticar a psicanálise. Porém, este é um tema que poderemos aprofundar mais num outro momento aqui na coluna.
Para encerrar é preciso lembrar que a psiquiatria,  a psicologia e a psicanálise, são disciplinas sustentadas na ética de não apagar a subjetividade do sujeito. E não há dor psíquica, sintoma, transtorno, desordem, síndrome, déficit, espectro, conforme insistem em nomear o sofrimento nos tempos atuais, que a escuta e o tratamento seja privilégio de uma dessas práticas.

Gláucia Pinheiro 

Coluna No Divã 

Revista DiverCidades


30/10/2020