As “novas patologias” e seus interrogantes na clínica
Para dar partida a essa breve pontuação, gostaria de ler, como epígrafe, a letra da canção de Chico Buarque chamada “A Rita”, na qual ele diz assim:
A Rita levou meu sorriso
No sorriso dela
Meu assunto
Levou junto com ela
O que me é de direito
E arrancou-me do peito
E tem mais
Levou seu retrato, seu trapo, seu prato
Que papel!
Uma imagem de são Francisco
E um bom disco de Noel
A Rita matou nosso amor
De vingança
Nem herança deixou
Não levou um tostão
Porque não tinha não
Mas causou perdas e danos
Levou os meus planos
Meus pobres enganos
Os meus vinte anos
O meu coração
E além de tudo
Me deixou mudo
Um violão
Por hora, fiquemos com a música ressoando como pano de fundo e trilha sonora para essa leitura.
Vivemos, hoje, tempos nebulosos no que diz respeito ao sujeito e seus sintomas diante do advento das “novas patologias”. Estão na ordem do dia, ultrapassando o meio psi, correndo, também, à boca pequena, no círculo “leigo” (e leigo, aqui, entre aspas visto que Freud nos alerta quanto a esse significante), questões quanto à elaboração da quinta edição do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais).
É diante do que encontramos como demanda na clínica, na fala do sujeito quando bate à nossa porta, que somos convocados a também nos interrogar e a fazer uma intervenção ética nesse discurso contemporâneo que solapa a singularidade. As novas patologias, ou, como preferem outros autores, as novas modalidades de subjetivação (que nada têm de novas e nos são velhas conhecidas), fazem um par perfeito com o discurso contemporâneo. Porém, como não há casamento sem desencontro e embaraços, assim como não há sujeito sem divisão, somos exigidos a sustentar uma posição ética e a manter uma crítica assídua no que se refere não só à clínica e à escuta do sujeito na sua singularidade, mas também a esse mal-estar na civilização.
Mal-estar que já podia ser ouvido em 1929, quando assim escreve Freud no primeiro parágrafo de seu texto “O mal-estar na civilização”:
É impossível fugir à impressão de que as pessoas comumente empregam falsos padrões de avaliação – isto é, de que buscam poder, sucesso e riqueza para elas mesmas e os admiram nos outros, subestimando tudo aquilo que verdadeiramente tem valor na vida. (FREUD, 1929, p. 73)
Hoje, vemos o discurso médico-científico ganhar força e se disseminar como palavra de ordem na cultura. Ele vem de mãos dadas com o discurso do capitalismo, atrelado às exigências do mercado, se instalando como o “novo” discurso contemporâneo. Tal discurso sustenta uma verdade absoluta quanto ao sujeito e afirma, com veemência, os transtornos, desordens ou distúrbios que o acometem, assim como oferece a melhor, mais eficaz e moderna forma de tratá-los ou eliminá-los. A ideia de extirpação e higienização retorna como método para solucionar os problemas sociais e humanos. Assim, como nos ensina Foucault, passamos de uma sociedade da lei para uma sociedade da norma, onde o que nos rege é a distinção permanente entre o normal e patológico.
O imperativo categórico que se instala na contemporaneidade é o seja feliz, máxima que determina o lugar do sujeito no mundo dos “normais”. Embora a busca da felicidade não seja nova, e sim diga de um ponto de estrutura do sujeito, nos tempos regidos pela avaliação, pelo sucesso e pelo apagamento completo da diferença, ou seja, pelo discurso médico-científico legislado pelo DSM, ser feliz é ordem, e é preciso que seja plenamente. Porém, como nos alerta Freud (1929, p. 84), “[...] o que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica”. Embora a felicidade seja, por estrutura, o propósito e a intenção da vida do homem, ela se mostra instantânea, fugaz, fugidia, episódica, como nos aponta Freud.
Diante dessa classificação categórica, subdividida e baseada num conjunto de critérios, como se apresenta o DSM, instaurou-se como desnecessária a escuta do sujeito e da sua história, bastando enquadrar suas “manifestações sintomáticas” nesse conjunto de critérios e, prontamente, definir um diagnóstico claro e objetivo e um medicamento eficaz para enquadrá-lo de novo no rol da normalidade. Nunca foi tão fácil diagnosticar as angústias, preocupações e tristezas inerentes à vida como “síndromes” e “transtornos”, assim como nunca foi tão farta e desnecessária a prescrição medicamentosa. Lançar mão, a priori, de um diagnóstico que traz como brinde uma caixinha surpresa, envolta por uma tarja preta, onde se encontra uma “balinha milagrosa” que deixa o sujeito “feliz” e elimina qualquer possibilidade de subjetivação, é calar o sujeito e fazer seu grito afônico, inaudível e, ao mesmo tempo, ensurdecedor. A “febre classificatória”, ou a banalização diagnóstica, se apresenta paradoxal, grave e nos coloca num impasse ético diante da proliferação medicamentosa e dos interesses do mercado a que ela serve. Como nos aponta Erik Porge, “[...] ela serve, antes de tudo, aos interesses de seu corporativismo, dos laboratórios farmacêuticos e das políticas de saúde”.
E o assunto torna-se mais severo quando se trata da banalização dos diagnósticos infantis e da medicalização da infância, cada vez mais precoce. A infância passou a ser uma doença. Ao menor sinal de “inadequação”, de um comportamento não esperado ou que não esteja dentro dos padrões do que se considera satisfatório, seja em casa ou na escola, a criança é levada, numa viagem ininterrupta, a consultórios dos mais diversos especialistas, que têm como função nomear o mal-estar que ela denuncia. Precocemente, as crianças vão sendo diagnosticadas, rotuladas, nomeadas e apaziguadas da sua constituição subjetiva. E, nessa busca por respostas, soluções, por um ajustamento daquilo que foge ao padrão, por uma adequação à normalidade, busca que tem aparência de cuidado e proteção, de tratamento, pais e professores compactuam com esse saber médico-científico, classificatório, que tem como efeito uma lesão desastrosa na subjetivação da criança enquanto sujeito desejante. Como aponta Ângela Vorcaro, um transtorno atribuído a uma criança produz um dano imaginário no laço social. Ou seja, para além do diagnóstico, do transtorno, da inadequação, está a doença da infância, a constituição psíquica, os sintomas que são próprios do infantil, sendo esse infantil a estrutura, aquilo que constitui o sujeito, aquilo que constitui sua neurose, como bem nos lembra Freud ao dizer que “a neurose é infantil”. Assim, medicalizando o infantil, o sujeito na sua constituição psíquica, estaríamos impedindo que esse sujeito se constitua como tal, como sujeito desejante? Nas palavras de Vorcaro (2011):
A nomeação diagnóstica pode adquirir tamanha valência que destitui o nome-próprio da criança, substituído pela identidade social conferida pelo nome da síndrome em que a medicina localiza, define e torna transparente a estranheza causada por ela. Estabelece-se, assim, sua nova filiação, já que a paternidade, sobre-o-nome, é dada pelo nome-da-síndrome (Santana, 1998, inédito) que baliza, referencia e justifica os atos, falas e condutas da criança, deslocando-a da possibilidade de situar-se a partir de sua ordem própria de filiação. Inserir uma criança no laço social como “aquela Rett”, “ele é PC”, “meu filho é Asperger”, é reduzi-lo ao registro médico, é amputar sua singularidade subjetiva. (VORCARO, 2011, p. 228)
Assim, a clínica nos interroga, pois que a clínica, seja ela qual for, é discursiva e, sendo assim, comporta o sujeito ($) dividido, singular. A clínica não é o lugar do fenômeno, do transtorno, da síndrome, mas sim o lugar da problematização do que transtorna, daquilo que desaloja e embaraça o sujeito, daquilo que o constituiu como tal, como desejante e inscrito no desejo do Outro. É exigência ética que nós não compactuemos com esse “saber anônimo da verdade da ciência” e possamos sustentar uma pergunta diante dos pequenos sujeitos que já nos chegam diagnosticados, muitas vezes, medicados, robotizados, com a demanda simples de uma confirmação diagnóstica.
Essa exigência ética é de que possamos, na direção de cura, dar voz ao grito de angústia do sujeito, escutá-lo na sua singularidade, permitir-lhe a dor, suportar o mal-estar e trazer de volta aquilo que o torna humano, ou seja, seus afetos mais corriqueiros. E que “[...] ópios, édens, analgésicos não toquem nessa dor, pois ela é tudo o que sobra ao homem”.
Quanto à criança, seus pais, professores, a escola e seu grande embaraço com o infantil, que uma pergunta também se faça: para que ou para quem serve esse diagnóstico tão buscado? Não seria para escamotear o saber que, de fato, importa no ato e na função de educar? Que eles – pais e professores – possam se apropriar do seu saber “leigo” e sustentar de fato seu lugar como educadores, sem a chancela do saber médico. Que possam eles se reconciliar com sua infância, ser surpreendidos e permitir a surpresa, o inesperado e a construção de um saber. E que o manual a ser seguido, principalmente na escola, não seja classificatório, esquemático e banal, mas sim que seja literal, literário, que comporte a letra, o a, o furo, o resto. E, recorrendo à nossa literatura infantil, tão rica de surpresas e significantes, assim como a própria infância, numa tentativa quase desesperada de fazer um corte nesse manual de instruções de fala plena de sentido, convoco “O menino maluquinho” a ser nosso “livro de cabeceira” nesses tempos tão pragmáticos. E que possamos aprender com esse menino que a infância cumpre seu tempo, deixa suas marcas e que o menino cresce, se torna adulto. Que esse crescimento não seja cheio de amarras que engessam e robotizam a vida. Que possamos descobrir, de fato, que esse adulto de amanhã, não foi ontem um menino maluquinho, mas sim um menino feliz. Feliz naquilo que a felicidade comporta de singular, de desejo, sem dormir no ponto um sono letárgico que não nos permite sonhar, pois a felicidade, como canta Tom Zé, “[...] é cheia de graça, é cheia de lata, é cheia de praça, é cheia de traça” e comporta sempre um ponto de falta.
E, para finalizar, retomo o meu ponto de partida, “A Rita”, cantada por Chico. Pois é a “Rita (Lina)” que vem levando o sorriso, o assunto, aquilo que é, de direito, infantil. Vem arrancando, do peito da criança, o afeto, a surpresa, a espontaneidade, aprisionando-a nessa identidade coletiva, matando o que há de próprio e singular, não permitindo se apropriar da herança que lhe foi legada, causando perdas e danos ao sujeito infantil. É essa “Rita (Lina)” que vai levando embora os planos, os sonhos, não permitindo os pobres enganos que fazem parte da experiência de cada sujeito. E, assim, faz calar, deixando mudo o violão.
Gláucia Pinheiro
Texto de 2012, mas completamente atual.