Há alguns dias fui assistir à estreia da peça de uma amiga querida que estava completando 25 anos de carreira. Lá estava ela, única, intensa, naquele palco enfeitado pelos figurinos de suas várias primeiras vezes, sob a incandescência avermelhada do holofote que a iluminava. Emocionada, ainda nos primeiros minutos do espetáculo, pensei, “ela faz isso há 25 anos, está escolada”. De repente, sou surpreendida pela fala que ao escutar ali, seguiu comigo, ressoando por semanas. “Eu adoro estreias. Estrear uma peça nova, um texto novo, um livro, uma comida... uma pessoa. Adoro estrear pessoas novas...” Saí dali com a indagação do quanto há de arte na vida e de real na arte. Do quanto a vida, a real, cotidiana, crua e dura, mas sempre de uma boniteza singela, é feita de estreias.


Estreias sem palco ou holofotes com jatos de luz, mas banhadas por tímidos raios de sol ou enevoadas por grossas neblinas. Ou mesmo encharcadas pelo aguaceiro de uma tempestade cinza. A vida é feita de estreias e a cada dia, mesmo que ela pareça fazer tudo sempre igual, se prestarmos bem atenção, estamos sempre inaugurando uma primeira vez.

Me lembrei de um texto que escrevi para encerrar o primeiro semestre letivo da primeira turma para a qual fui professora na graduação de psicologia. Nele eu falava da estreia deles, os alunos, como a primeira turma de psicologia daquela faculdade que dali em breve iria se formar. Falava da minha estreia na primeira turma pra quem eu me apresentava como professora universitária. Eu estava ali estreando uma prática que era minha velha conhecida. Afinal, mãe, tia, tia-avó professoras, marcaram com exemplos as brincadeiras de escolinha desde que eu comecei a me entender por gente. Me formei em Magistério. Fui professora antes de ser psicóloga. Um paradoxo. Como estrear algo que há tanto faz parte da minha vida? Por que aquele frio na barriga, a inquietação e um leve medo de não ser capaz? Logo uma resposta rápida. Uma estreia é sempre impregnada de sonhos, expectativas, desejos, que aparecem mesclados com esse medo, com as incertezas e inseguranças. Muitas vezes não só nossos, mas também daqueles que compõem nossa rede de afetos.  Éramos ali, naquela estreia, protagonistas da história daquela faculdade, carregando o peso dos impasses, dos embaraços, dos tropeços que ser o primeiro impõe.


Desde pequeninos são inúmeras as primeiras vezes que nos deixam marcas e com as quais vamos construindo e contando a nossa história. O aparelho psíquico se funda com uma primeira experiência de satisfação, já dizia Freud. É a partir daí, das experiências que se seguem, que vamos nos constituindo. O primeiro desconforto, o primeiro sorriso, os primeiros passos, a primeira palavra... o primeiro dia na escola, o primeiro tombo de bicicleta, a primeira professora, o primeiro beijo... o primeiro amor, o primeiro dia na faculdade, o primeiro emprego... o primeiro filho... E todas essas primeiras vezes acolhem o prazer e a angústia, a euforia e a inquietude, a expectativa e a frustração... Há nas estreias o desejo da conquista e o medo de se lançar ao novo desconhecido, mesmo que já tenhamos notícias dele.
Quase que em associação livre, meus pensamentos e devaneios voaram do palco, da sala de aula, para minha prática clínica. Me dei conta que eu também, há quase 25 anos, escuto pacientes em análise. Um novo paradoxo. Tanto do lado do analista quanto dos pacientes, pois a cada novo paciente que chega e uma nova análise se inicia, é sempre surpreendente novo, único. É sempre uma estreia. Cada sessão é marcada por um ineditismo. Uma palavra, a tanto repetida, pode ali ganhar um outro sentido, um novo estatuto e aquele sujeito, deitado no divã, ser surpreendido em estado de primeira vez. Nesse trabalho, tanto analista quanto analisante “estreiam pessoas”. E apesar da aridez e das dores com as quais nos deparamos na travessia desse percurso, ele é surpreendentemente poético. É assim, nas estreias sem público, sem plateia, sem um palco iluminado, que a vida acontece, que vamos nos descobrindo e reinventando, enfrentando nossos dragões imaginários e nos encantando com a beleza e a surpresa de experimentar o mesmo pela primeira vez.